4 Clássicos Infantis com Histórico Racista (e por que isso importa)

Muitos clássicos infantis com histórico racista continuam não sendo discutidos em sociedades em que ainda há um abismo entre brancos e negros. 

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Caro leitor. Aconteceu. Chegou o dia de mexer em um vespeiro particularmente cabuloso. Você pode me achar cruel. Pode espernear, se descabelar, sapatear. Pode abrir as janelas e gritar que a vida não é justa, que preferia nunca ter nascido. Nada disso vai mudar a realidade. Caro leitor. Já passou da hora de falarmos sobre o racismo em alguns ícones amados da sua infância.

racistasEi, senhora! SENHORA! Não é porque é fim de ano que a gente pode parar de problematizar! SENHORA!

 

Já começo a ouvir o eco de um coro chorão ao fundo. Parece que ele diz algo como: “Ah, vá se catar! São só desenhos, historinhas. Tem coisa muito pior que isso no mundo!”.

Ah é? Tem coisa muito pior do que bombardear crianças em formação com narrativas e estereótipos racistas em um país onde negros ainda são amplamente marginalizados? Sim, suponho que exista coisa pior que isso mesmo. Como a execução de cinco crianças negras pela polícia no Rio de Janeiro, por exemplo. Ou o fato de 77% dos jovens vítimas de homicídio no Brasil serem negros.

Por isso mesmo precisamos falar sobre racismo em desenhos, livros e programas infantis. Fechar os olhos para questões como essa é falhar em entender o racismo como um sistema complexo, que abrange todas as áreas da sociedade de modo a manter a exclusão e vulnerabilidade da população negra.

A manutenção de entretenimento racista para crianças – mesmo que sutil – é uma faceta dessa sistema. Por um lado, ela ajuda a formar nas crianças brancas a ideia de que pessoas negras são inferiores e menos importantes. Habituadas a ver personagens negros como figurantes inferiorizados tanto na televisão como no cotidiano, essas crianças crescerão para, na melhor das hipóteses, se tornar adultos que simplesmente não pensam e nem se sensibilizam com a marginalização e a destituição de direitos da população negra. Isso explica um pouco a nossa empatia seletiva. Inúmeros jovens negros são assassinados todos os anos, inclusive pela própria polícia que deveria protegê-los, mas não fazemos nem um décimo de escândalo e de luto por eles do que quando um jovem branco é a vítima.

Por outro lado, a criança negra também está sujeita a ter a sua formação diretamente afetada pelas narrativas racistas que vemos em clássicos infantis. Autoestima, autoconfiança – tudo isso pode ser afetado na criança negra habituada a enxergar personagens negros serem retratados sempre de forma negativa e inferiorizada. Ou mesmo a não enxergar qualquer personagem negro na ficção. A falta de personagens negros nas histórias é um golpe especialmente perverso, pois fortalece essa noção de que pessoas negras, apesar de serem a maioria no país, são meras figurantes sem importância.

racistasRepresentatividade importa.

 

Dessa forma, o entretenimento racista para crianças ajuda – junto com inúmeros outros mecanismos institucionais, linguísticos e midiáticos – a criar tanto o opressor como o oprimido.

Falemos sobre isso, então. E pensemos que os exemplos abaixo são apenas alguns em um mar de racismo que a gente teima em não ver. Vamos começar com um dos meus desenhos favoritos quando criança…

Tom e Jerry

Antes de começar, é preciso falar de dois estereótipos e práticas profundamente racistas que permeiam a mídia e o entretenimento até os dias de hoje.

Em primeiro lugar, temos o arquétipo da Mammy. A mammy seria uma mulher negra de meia idade, escravizada ou ex-escravizada doméstica de uma família branca. Gorda, supersticiosa, assexuada, cozinheira de mão cheia e sempre adornada com um avental e lenço na cabeça, a mammy normalmente atua como ama-de-leite/babá das crianças da família, além de realizar todos os afazeres domésticos e fazer as vezes de conselheira da patroa. Sua vida é servir, o que ela faz com prazer e muito senso de humor. Ah – e como os brancos são muito bonzinhos, a mammy é sempre muito querida e considerada como um membro da família. E não dá pra ser racista se você considera sua empregada negra como parte da família, néam? #sqn

O surgimento do personagem da Mammy aconteceu nos EUA, na segunda metade do século XIX, e dominou por muito tempo o imaginário dos americanos, que tentavam de todo jeito reescrever a história para fingir que a escravidão não foi tão ruim assim. O estereótipo da Mammy é racista, porque essa mulher negra escravizada amada pela família branca nunca existiu. A maioria das escravizadas e servas domésticas eram adolescentes ou jovens – a expectativa média de vida delas era de 33 anos de idade – e elas costumavam ser usadas pelos senhores como escravas sexuais. A mammy é, portanto, um perverso revisionismo, com o objetivo de minimizar as atrocidades da escravidão e manter as mulheres negras confinadas a posições subalternas.

Em segundo lugar, temos a prática racista do blackface. O blackface é o ato de pintar o rosto de preto e os lábios de vermelho de forma caricata, com o objetivo de interpretar uma pessoa negra.

racistasE quando eu digo ‘interpretar’, eu quero dizer ‘esculhambar’.

 

A prática surgiu por volta de 1830, quando homens brancos se pintavam e se apresentavam para a aristocracia branca escravista com o objetivo de ridicularizar a população negra. Mais tarde, a prática se tornou corrente no cinema e na televisão, sendo que ainda hoje vemos gente usando-a como se fosse nada demais.

racistasEsse ano mesmo, pleno 2015, a peça A Mulher do Trem, da companhia teatral Os Fofos Encenam, foi cancelada depois que inúmeras manifestações de repúdio nas redes sociais denunciaram o uso de blackface na peça.

 

De acordo com a filósofa Djamila Ribeiro, o blackface “serve tanto como estereótipo racista quanto como forma de exclusão, porque se no primeiro caso ridiculariza, no segundo nega papéis a artistas negros.”

Pois bem. Agora que você já sabe tudo isso, vai entender por que a Amazon Prime Instant Video tascou-lhe uma advertência para Tom e Jerry na sua fila de streaming, avisando que “Tom e Jerry pode retratar alguns preconceitos étnicos e raciais que já foram comuns na sociedade americana. Tais representações eram erradas então e são erradas hoje em dia.”

Em suma, o desenho usa e abusa tanto do estereótipo da Mammy – representada pela dona do Tom – como da prática de blackface.

racistasOlha ela aí.
racistasE tem isso também…
racistasE…er..isso.
racistasOk, já chega, né?

 

As Aventuras de Babar

Integrando um repertório de programas infantis de qualidade inquestionável da TV Cultura, as aventuras do reizinho elefante Babar foi um clássico da minha infância. É possível que agora, depois de adulto, tudo o que você lembra de Babar seja a sua voz suave e sua predileção por ternos em cor verde vibrante, por isso vou tecer uma singela descrição do desenho pra você:

O desenho As Aventuras de Babar foi baseado nos livros do francês Jean de Brunhoff, Histoire de Babar. Resumidamente, ele conta a história de um elefante chamado Babar que é resgatado por uma senhorinha francesa quando sua mãe é morta por um caçador. Levado para uma grande cidade (Paris, nos livros), Babar é criado como um ser humano. Ao ficar sabendo que seu bando ainda corre perigo por causa do caçador, Babar retorna ao lar, resolve o problema com todo o seu conhecimento humano, e vira rei. Ele, então, introduz a sociedade dos elefantes à cultura européia…er…quer dizer, humana, e todos os elefantes ficam super felizes, vestindo roupas, ouvindo música clássica e sendo governados por um ditador benevolente.

racistasConvenientemente, Babar não aprendeu sobre democracia no seu intercâmbio.

 

Se Babar parece uma grande propaganda colonialista, com os elefantes sendo “civilizados” com cultura européia e amando tudo isso, é porque provavelmente é. O primeiro livro da série foi escrito em 1931, no auge da colonização francesa na África. Nesse contexto, era comum a ideia de superioridade do “civilizado” povo francês em relação aos “selvagens” africanos – ideia que se traduz em Babar, não só pelo fato de ele ser reverenciado pelos outros elefantes por ter sido criado nos moldes europeus, mas também pelas inúmeras vezes em que regiões fora do governo de Babar são retratadas, sempre populadas por homens violentos e selvagens de pele preta e grandes lábios vermelhos.

racistasAqui…
racistasE aqui…
racistasBem, já entendemos, né?

 

Embora o criador de Babar tenha sido Jean de Brunhoff, grande parte da coleção foi escrita e desenhada pelo seu filho, Laurent de Brunhoff. Hoje com 90 anos, de Brunhoff concorda que os livros contém um claro teor de propaganda colonialista e chegou a pedir ao editor que recolhesse um dos livros – Babar’s Picnic – por sentir vergonha do seu conteúdo.  

 

Tintim no Congo

Ah, quem não lembra com saudosismo das aventuras de Tintim, o repórter que mais se meteu em confusão na história da animação mundial? Embora tenha gozado de imenso sucesso, no entanto, Tintim não ficou livre de incorporar os mais grotescos ideais racistas e colonialistas das primeiras décadas do século XX, sendo que um dos livros da série que originou o desenho chegou a ser banido em algumas partes do mundo. Estou falando do livro Tintim no Congo, lançado na década de 1930 e recheado de estereótipos atrozes de povos africanos.

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Basicamente, todas as pessoas que Tintim encontra no Congo são como crianças com graves problemas neurológicos, que o recebem como um grande mestre benevolente que chegou para salvá-los de sua incurável incompetência e inferioridade.

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Hergé, o escritor de Tintim, reproduzia em seus livros o pensamento belga da época sobre o Congo – um país que por anos foi propriedade privada do rei belga Leopoldo II, que se esforçou para exterminar metade da população congolesa com seu governo escravista e genocida. Mais tarde, o próprio Hergé, escritor de Tintim, admitiu se sentir envergonhado pelo livro. Recentemente, o livro foi levado a julgamento na Bélgica, mas inocentado, o que nos leva ao último e brasileiríssimo item da lista…

O Sítio do Pica-Pau Amarelo (Monteiro Lobato)

É, é, eu sei. Todo mundo já está careca de saber que Monteiro Lobato era racista confesso. O problema é que mesmo todo mundo sabendo disso, o cara ainda é endeusado como um dos mais importantes escritores brasileiros. Mesmo apresentando personagens negras subservientes, pouco inteligentes e comparando-as a animais como macacos e urubus, e abusando de estereótipos racistas…

racistasA icônica Tia Anastácia é uma clássica representação da mammy, em versão brasileira…

 

…suas obras continuam gozando de imenso prestígio. Mesmo tendo escrito um livro em que o final feliz é a aniquilação da população negra…

racistas“Acontecem coisas tremendas, mas vence por fim a inteligência do branco” – Lobato resumindo seu livro O Presidente Negro para o amigo Godofredo Rangel. Quando não consegue achar editor nos EUA para o livro, escreve “Meu romance não encontra editor. (…) Acham-no ofensivo à dignidade americana. (…) Errei vindo cá tão verde. Devia ter vindo no tempo em que eles linchavam os negros.”

 

seus livros continuam fazendo parte do Programa Nacional Biblioteca na Escola, sem qualquer exigência de capacitação de professores para discussão e contextualização em sala de aula. Mesmo tendo sido um grande entusiasta do Ku Klux Klan

“País de mestiços, onde branco não tem força para organizar uma Kux-Klan (sic), é país perdido para altos destinos […] Um dia se fará justiça ao Ku-Klux-Klan; tivéssemos aí uma defesa desta ordem, que mantém o negro em seu lugar, e estaríamos hoje livres da peste da imprensa carioca — mulatinho fazendo jogo do galego, e sempre demolidor porque a mestiçagem do negro destrói a capacidade construtiva” – em carta de 1928, a Arthur Neiva.

…e da eugenia – inclusive pela literatura…

“É um processo indireto de fazer eugenia, e os processos indiretos, no Brasil, work muito mais eficientemente” – em carta de 1930, sobre o polêmico livro Caçadas de Pedrinho.

…o Dia Nacional do Livro Infantil, 18 de abril, foi instituído em homenagem a ele, na data de seu aniversário.  

Basicamente, no caso de Lobato, a sociedade brasileira não se contenta em simplesmente fechar os olhos e fingir que racismo não existe, como costuma fazer na maioria das vezes. Não, nesse caso ela descaradamente dá de ombros e diz “É, ele e seus livros eram racistas mesmo. E daí?”.  

Consideravelmente mais assustador, na minha humilde opinião.

Leia também Que Horas o Cinema Nacional vai se Posicionar; e 8 Estereótipos Racistas que Novelas Brasileiras Precisam Parar de Usar. 

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