Imigração na Europa: Como Transformar Imigrantes em Terroristas

Marginalizados, imigrantes na Europa são o alvo favorito de grupos fundamentalistas que promovem violência sectária.

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Só esse ano, 220 mil imigrantes e refugiados chegaram à Europa fugidos de conflitos violentos em várias partes do mundo. Dois mil e quinhentos deles morreram na perigosa travessia do Mar Mediterrâneo, para chegar ao velho continente. 

 

A chegada de imigrantes na Europa não é nenhuma novidade. Já há muitas décadas a região representa um importante destino de imigração – em especial, os países do oeste europeu. Aliás, desde a década de 1990, os movimentos migratórios representam o principal fator de mudança demográfica na região. Querendo ou não, os imigrantes constituem uma contribuição essencial para o mercado de trabalho europeu e para o seu crescimento econômico.

Muitos, entretanto, não olham a chegada de imigrantes com bons olhos. A xenofobia sempre foi um problema sério na Europa, mas o ódio a imigrantes tomou amplas proporções após os atentados de 11 de setembro de 2001 (principalmente a imigrantes muçulmanos). Desde então, os muçulmanos na Europa têm experimentado uma discriminação muito maior, mas poucos têm o entendimento de que ela é proibida por lei. Prova disso é o fato de que a maior parte não denuncia os atos de discriminação de que são vítimas (um total de 79% entre os entrevistados para o relatório da  Agência da União Européia para Direitos Fundamentais). Isso evidencia o quão pouco os grupos discriminados na Europa sabem a respeito de seus direitos. Uma ignorância que, muitas vezes, tem a ver com a falta bem real de organizações de apoio a imigrantes em muitos países europeus.

Para piorar, além da discriminação baseada em etnia ou religião, muitos imigrantes ainda têm de enfrentar uma discriminação relacionada ao seu país de origem. Quanto mais pobre um país e menor a sua capacidade de barganha, mais prejudicados são os seus emigrantes, pois imigrantes de países mais pobres recebem menos benefícios relacionados à mão-de-obra e seguro social. Dessa forma, por ser visto como representante de um país dominado, ele é duplamente discriminado.  Até os termos usados em diferentes casos indicam isso. Quando um haitiano vem para o Brasil, ele é chamado de imigrante, por mais qualificado que seja. Já quando vem um europeu ou americano, chamamos de expatriado.

A discriminação, no entanto, não é o único problema que os imigrantes enfrentam nos países que os recebem. Uma dificuldade muito mais complexa diz respeito ao próprio status do imigrante. O sociólogo francês Abdelmalek Sayad define o status do imigrante como uma espécie de ilusão coletiva que acomete tanto os imigrantes como os nacionais, e que oscila o tempo todo entre o permanente e o provisório. Essa ilusão seria partilhada:

  1. Pelos imigrantes, que precisam acreditar no caráter provisório de sua estadia em uma sociedade hostil à sua presença;
  2. Pelas comunidades de origem, que consideram seus emigrantes como parte ausente, porém integrante daquele lugar; 
  3. Pela sociedade que recebe o imigrante (a sociedade de imigração), que nega a eles direitos relacionados à sua permanência, mas trata a sua estadia como se ela pudesse ser definitiva enquanto trouxer benefícios (essa estadia depende, sempre, do trabalho que o imigrante realiza). Assim que começam a reivindicar direitos consistentes com uma existência plena na sociedade de imigração, os imigrantes vêem restringido novamente o seu status à provisoriedade.

Não sendo um nacional e, portanto, excluído do plano político, o imigrante é obrigado a adotar um comportamento neutro. Dessa forma, a sociedade de imigração fica isenta da preocupação de tratá-lo com igualdade, vendo-se obrigada a conceder-lhe somente o mínimo – que muitas vezes acaba sendo o pior dos mínimos.

Impossível, nesse ponto, não comentar a análise que Sayad faz a respeito dos chamados cités HLM, na França. O padrão de vida nesses alojamentos está entre os piores de todo o país e a maior parte de seus habitantes é de origem africana. Acomodados em quartos e cozinhas coletivas, os imigrantes que vivem neles são tratados como crianças a serem educadas, tendo que seguir rígidos regulamentos internos e correndo o risco de serem expulsos sem aviso prévio no caso de qualquer infração.

Além disso, os alojamentos são vistos como um local de comunidade – uma suposição falsa, pois a maior parte dos residentes vive isolada nos quartos. Sayad fala bastante dessa percepção equivocada, que considera os imigrantes como uma comunidade feliz e integrada, ignorando o fato de que os indivíduos nos alojamentos continuam sendo distintos uns dos outros e que a única característica que partilham com certeza é a condição de imigrante.

Dessa forma, ignoram-se as múltiplas origens e identidades de imigrantes marroquinos, tunisianos, argelinos, etc, para defini-los simplesmente como árabes ou muçulmanos, classificados como um grupo de natureza contraditória para justificar as condições em que eles são colocados e os discursos preconceituosos a respeito deles.

Com isso, o imigrante permanece um indivíduo marginalizado socialmente, com direitos limitados e alvo constante de discriminação. Suas múltiplas identidades, tudo o que poderia fazer com que houvesse uma maior identificação entre ele e outros indivíduos na sociedade em que vive, são ignoradas e desaparecem sob o peso de uma única dimensão que o caracteriza aos olhos dessa sociedade: a de um imigrante pertencente a uma determinada comunidade (formada, com cada vez mais freqüência, por laços de religião). Esse indivíduo, assim como é visto de fora unicamente pelo o que o classifica como membro de um determinado grupo (muçulmano, hindu, sikh, cristão), também tem a sua capacidade de atuação e interação na sociedade limitada, pois é esperado que ele atue e interaja apenas através de sua comunidade.

E é aí que reside o problema. Uma sociedade que mantém os indivíduos limitados às suas respectivas comunidades é uma sociedade que pode até ser rica culturalmente, mas é pobre em diálogo. E esse monoculturalismo plural, em que diversas culturas coexistem, mas não interagem, é mais suscetível a episódios de violência incitados por extremismos sectários. Isto é, o cultivo da violência sectária tem muito mais chances de prosperar em sociedades fragmentadas, em que os indivíduos devem primeiro se ver como membro de uma comunidade, para então poderem identificar-se como ingleses, franceses, dinamarqueses, etc.

imigrantesMuitos filhos e netos de imigrantes não conseguem nem isso, dado que o termo “imigrante” assumiu o significado de uma condição social e inclui nacionais filhos e netos de imigrantes. De acordo com o escritor Nadir Dendoune, “Como esperam que eu me sinta francês se as pessoas sempre me descrevem como um francês de origem algeriana? Eu nasci aqui. Sou francês. Quantas gerações são necessárias para que parem de mencionar a minha origem?”

 

De acordo com o economista Amartya Sen, a definição da identidade de um indivíduo baseada em uma única característica que este possa possuir é prejudicial, pois gera nesse indivíduo uma visão bitolada de si mesmo, provocando distanciamento e conflitos entre grupos. No caso do enfoque da religião como identidade prioritária, por exemplo – que é o que mais tem acontecido na Europa – o indivíduo pode facilmente acabar sendo explorado por líderes religiosos sectários, que encorajam a violência em nome da religião.

De certa forma, muito da violência sectária que têm acontecido na Europa na última década tem a ver com um modelo civilizacional que encarcera indivíduos em grupos definidos por suas nacionalidades ou religiões. Forçados a atuar através de suas comunidades – as quais impõem laços de solidariedade e impedem o questionamento e a priorização de outras identidades que seus membros possam ter –, os imigrantes acabam assumindo uma única identidade acima de qualquer outra, o que os torna mais vulneráveis a discursos de ódio e violência, e dificulta a sua integração.

Foi isso o que demonstrou, por exemplo, os depoimentos prestados por jovens franceses de origem árabe, filhos e netos de imigrantes, durante as revoltas de 2005, na França. Muitos deles manifestaram uma vontade frustrada de viverem uma vida em que a filiação religiosa represente somente um aspecto de suas identidades. Ao invés disso, no entanto, o fato de serem muçulmanos determina todos os outros aspectos de suas vidas. De outro lado, a crise das charges de Maomé que culminou no trágico ataque aos funcionários da revista Charlie Hebdo no começo de 2o15 demonstra claramente a segregação de caráter religioso sofrida pela população muçulmana na Europa. A crise talvez não tivesse assumido proporções tão grandes caso as pessoas se sentissem livres para assumir e priorizar outras identidades além da religiosa.

imigrantesJá discriminadas por conta desse aspecto e aprisionadas nessa definição, o que era para ser apenas “uma brincadeira” acabou se tornando uma ofensa inadmissível para muitos.

 

Infelizmente, enquanto os países puderem contar com mão-de-obra imigrante oferecendo-lhes o mínimo em troca e tratando-os como cidadãos de segunda classe, eles o farão. Ao mesmo tempo, crescem os extremismos, a violência sectária e o terrorismo. O reconhecimento da igualdade de todos acima de interesses nacionais e estatais são essenciais para que as pessoas parem de ser classificadas em termos de “civilizações” e religiões. Os imigrantes devem ser aceitos nas sociedades europeias e fazer parte, efetivamente, de suas democracias. Somente assim questionamentos necessários poderão acontecer e o combate ao terrorismo e à violência sectária ficará muito mais fácil.

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