Não há Nada de Errado com as Mulheres Negras. Assim Como as Outras, Somos Maravilhosas!

Sejam honestos quando argumentam sobre a solidão afetiva de mulheres negras: não há nada de errado conosco. 

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Há algumas semanas, textos de ativistas do feminismo negro interseccional, que vem ganhando cada vez mais adeptas pelo seu poder imediato de identificação com as pautas inerentes a vida de mulheres negras e não negras, viralizaram nas redes sociais, provocando uma série de opiniões e sentimentos contraditórios, devido a carga pesada que o assunto evoca. Sim, estamos falando sobre a famigerada solidão da mulher negra.

O assunto, ao contrário do que parece, é antigo, muito antigo, e já foi tema de estudos filosóficos, sociológicos, científicos, etc. Mas, como tudo que se refere a assuntos que envolvem a mulher negra, o silenciamento vem sendo sistemático e os depoimentos duramente repreendidos por homens e mulheres negros e não negros.

Mas a nova geração de feministas negras, herdeiras do legado de lutas e pequenas, porém significativas, glórias – de Luisa Mahim a Lélia González, passando por Dandara, Xica da Silva e Tia Ciata, entre tantas outras anônimas e igualmente maravilhosas – manteve principalmente a coragem e predileção (ou necessidade) de escancarar feridas purulentas dentro da questão racial, pois compreendem que a eloquência do discurso é proporcional ao histórico de dor e sofrimento causado pela violência pontual e insistente do apagamento social a que estão expostas, e suas diversas consequências na formação das gerações vindouras.

Uma reação tsunâmica se seguiu não só vinda de pessoas ligadas ao movimento negro, mas de outras vertentes sociais. Homens negros e não negros, mulheres negras e não negras, pessoas pró relacionamentos inter-raciais, etc, gritando, ou melhor, berrando a fatídica e caricata frase, considerando o contexto em que ela se mantém: “Amor não tem cor”. O amor não, já o relacionamento amoroso…

Obviamente, essas pessoas não acreditam nisso, a menos que mantenham uma mentalidade bobinha e vivam em um mundo-bolha-individualista, onde tudo começa e termina no próprio umbigo, que acaba sendo a régua mestra que mede tudo e todos num mesmo parâmetro. Mas peraí, é exatamente isso.

Essas pessoas vivem em suas bolhas de presunção e medo, que cega e impossibilita um giro de 360 graus de seus pescoços esticados pela soberba, para avaliar que em um mundo que agrupa cerca de 7 bilhões de pessoas, as realidades se diversificam à medida que os problemas em comum produzem nuances comportamentais diferenciadas.

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Mas a questão que mais chamou atenção, a parte de toda a alienação que demonstram sobre o doloroso assunto, foi um apontamento em um fórum de discussão, que embora medíocre, é absolutamente senso comum nessa sociedade racista:

“Ninguém tem culpa que as mulheres negras são preteridas em relação as brancas. Os homens negros nos escolhem porque somos melhores, tanto na estética quanto no pensamento (ela quis dizer no intelecto). Vocês têm que melhorar em tudo pra serem escolhidas também.”

Mas afinal, o que há de errado com mulheres negras?

Óbvio que a ‘causa’ do preterimento que alimenta a condição complicada em que a mulher negra está inserida, no que se refere a afetividade, é o racismo. Indiscutível e hermético, essa constatação não comporta achismo e opiniões vazias, a menos que se possa provar pela lógica o contrário.

Mas precisamos desfazer mitos atrelados a essa verdade, porque pessoas de mentalidade aliciada pelo racismo estrutural, insistem em usar argumentos pueris para justificar o injustificável. Então, vamos a eles:

– Primeiramente, a beleza da mulher negra é inegável e reconhecida mundo afora. Todas as raças possuem belezas. Mas apenas a caucasiana é reconhecida em toda sua plenitude, e obviamente, num mundo construído por e para pessoas brancas, com forte estrutura montada para que as opressões mantenham o status quo, o padrão que se sobrepõe a existência de diversidade estética não poderia ser outro.

Não se mensura beleza de pessoas, não importa a raça a qual pertencem. Beleza é beleza, como bem define a filosofia, o belo é subjetivo e está atrelado ao sentimento que o objeto portador de beleza desperta aos sentidos, não é estático ou controlável. Não é objetivo, é antes de mais nada sensorial.

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Mas toda vez que se considera uma beleza contrária a estética caucasiana, ela vem acompanhada do adjetivo “exótico”.

Vale a reflexão: exótico para quem, visto que o significado real da palavra se refere a algo que está fora da visão comum? Reafirma-se aí o racismo estrutural, porque alimenta a ideia de que a visão comum é branca. Pessoas vivem e convivem em um mesmo espaço geográfico que se convencionou chamar de mundo. Negros e outras etnias nao vivem fora desse mundo “branco”, não somos um mundo paralelo, embora racistas gostem de pensar assim. Ou não?

– Seguindo, temos o equívoco que esbarra na questão dos valores sociais de ascensão e que nos remete a um dos motivos mais vis do confinamento afetivo das mulheres negras: a afirmação do negro bem sucedido economicamente através da ‘aquisição’ da mulher branca.

Essa mulher branca funcionaria como porta de entrada para o homem negro para outra dimensão social e melhor aceita pelos brancos, porque é seu “habitat natural”.

“A parte mais óbvia da explicação é que a branca é mais bonita que a negra[…] Quem me conheceu dirigindo um Fusca e hoje me vê de Monza tem certeza de que já não sou um pé-rapado: o carro, como a mulher, é um signo.” Frase do historiador Joel Rufino dos Santos
(SANTOS; BARBOSA,1994)

Não, minha gente, na verdade, não existe um preterimento a pessoa que constitui a mulher negra em si, mas ao signo que a ela está cravado devido a limitação socioeconômica pautada pelas oportunidades que o racismo estrutural impõe.

Isso não é determinante, evidentemente, visto que, atualmente, a quantidade de mulheres negras bem sucedidas e intelectualizadas aumenta substancialmente, principalmente pelas políticas afirmativas que devolvem um pouco dos direitos que sempre lhes foram roubados.

Esse fato não faz com que o homem negro codifique de forma diferente a mulher negra ou que o branco passe a considerar essa mulher ‘digna’ de uma relação pública. Nesse ponto, o direcionamento da questão mantém o caráter racista, mas soma-se ao segundo problema estruturante da sociedade: o machismo.

Mulheres negras sempre assustaram homens de todas as raças pelo seu caráter indomável e forte o suficiente para não sucumbir às pressões de carregar uma sociedade inteira nas costas, ora como a mãe preta que amamenta, ora como a gostosa que diverte, ora como a doméstica que mantém a logística da casa grande moderna.

Fomos podadas da imposição social comum ao gênero feminino; não nos sobrou espaço para a delicadeza angelical de uma princesa cordata. Esse insigth me veio, certa vez em que estava conversando com dois amigos, um negro e outro branco, e a citação de um deles em concordância imediata do outro foi:

“A mulher negra assusta mesmo, ela é combativa, ela se impõe. Ela dá a impressão de que não vai tolerar as malandragens masculinas. É complicado ficar com um tipo de mulher que deixa claro que não precisa de nós!”

Essa fala diz muito sobre nossa postura frente a sociedade da supremacia masculina. Ou seja, nossa postura, pautada nas inúmeras dificuldade que vivemos, na luta pela sobrevivência e contra o abuso sistemático a que somos expostas, nos torna uma ameaça à masculinidade torta baseada no autoritarismo e na pseudo proteção do homem em relação a mulher.

Nossa realidade dura e solitária não permitiu que sonhássemos e nos ensinou desde cedo que a única saída era a luta. Somos combativas, não naturalmente e sim por autodefesa.

Portanto, homens negros e brancos preterem também a aparente impotência do machismo em nossas decisões, embora ele seja atuante em outras áreas de nossas vidas.

Portanto, mulher branca, você não está sendo escolhida em uma escala que define quem é ‘melhor’ ou pior e sim em uma escala que define onde posso ou não exercer com plenitude e sem censura MEU PODER DE MACHO. E convenhamos, em termos de machismo, a igualdade racial existe, pois homens negros e não negros se apoiam mutuamente quando o assunto é opressão feminina.

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E por fim, devo dizer que:

NÃO EXISTE PROBLEMAS COM MULHERES NEGRAS.

Não somos nós o problema.

O problema é o racismo e seus diversos braços, que tem concentrado na mulher negra todos os efeitos possíveis que, misturados ao machismo, são nitroglicerina pura. Um homem branco que não assume publicamente seu amor por alguma mulher negra, ou o homem negro que toma para si uma mulher branca, não nos rejeita totalmente; rejeita a ideia que representamos por consolidação de estereótipos que carregamos em nossa melanina.

Mulheres brancas continuam convivendo com o fantasma da fetichização dos nossos corpos, que os seus parceiros negros e/ou brancos, mantêm às escondidas (vide inbox misóginos e nojentos que toda mulher negra em idade sexual ativa recebe frequentemente. São histórias de assédio vindas quase que exclusivamente de homens comprometidos nos mais variados perfis de relação amorosa aceitáveis socialmente).

Continua, ainda hoje, a ideia de que ‘suas negas’ estão aí para toda e qualquer satisfação sexual possível e doentia, mas nunca para passeios de mãos dadas no shopping.

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E mulheres brancas sabem disso, e também tem lá suas feridas dolorosas sobre o assunto, porque a hostilidade que vem delas é gritante, ultrajante e deprimente. Com frequência, elas nos negam sororidade e amizade, e sufocam qualquer empatia, mesmo convivendo de perto com nossos problemas raciais.

Certa vez, em um evento, fui apresentada à namorada de um amigo. Ela foi muito simpática na frente dele e dos outros convidados, mas quando estávamos sós, ignorava todas as minhas tentativas de aproximação e finalizava minhas conversas com um sorrisinho amarelo, me ignorando solenemente. Não pude deixar de constatar qual era o problema, pois ela foi totalmente diferente com todos os outros amigos e amigas, brancos como ela. Acabou sendo amiga de todos, já comigo…

Toda mulher negra já passou por algum caso de perseguição vinda de mulher branca, seja feminista ou não. Desde os tempos coloniais, quando a sinhá não aceitava seu senhor de engenho estuprando as mulheres negras escravizadas. Essa birra é antiga.

Sejam honestos quando argumentam sobre a solidão afetiva de mulheres negras: O problema não é nosso. Nós apenas vivenciamos, diariamente. E até que a hipocrisia seja derrubada, ativistas negras falarão sobre isso, porque podem falar, querem falar e devem falar sobre tudo que dói e prejudica nossa permanência nesse mundo onde somos VÍTIMAS.

Mulher branca, não caia nessa conversa de que existe uma superioridade sua com relação às mulheres negras. Observe e não se deixe objetificar, servindo de troféu para o homem machista. No final, estamos mais juntas nessa história do que parece. Embora nossa dor seja pública, sua solidão também existe, pois estar em um relacionamento público e oficial não é sinal absoluto de felicidade ou de ausência de solidão.

Joice Berth escreve também no Justificando e no Imprensa Feminista, onde este texto foi postado originalmente. 

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