Precisamos Falar sobre Sororidade Seletiva

Sororidade, coraçãozinho e hashtag bonitinha não vale só para aquelas que vivem no mesmo ambiente em que vivemos, com a nossa mesma cor e classe social. 

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Sejamos coerentes com o que defendemos. No mês passado, quando a Revista Veja – mais do que conhecida por seu descrédito e sensacionalismo, diga-se de passagem – falou em tom elogioso sobre a esposa “bela, recatada e do lar” do presidente golpista Michel Temer, a internet foi à loucura. A capa da revista causou tamanho rebuliço que logo virou meme: choveram fotos nas redes de mulheres (e homens) mostrando seus lados subversivos. Entre fotos de meninas em trajes de banho e outras abraçadas com suas garrafas de cerveja, o recado era uníssono: somos mulheres, somos humanas; somos belas, recatadas, e do lar só se assim desejarmos. Muito que bem.

A festa acabou, e agora José? Na semana passada, um vídeo de estupro coletivo foi divulgado na internet como se divulga a vitória de um time de futebol na televisão. Uma adolescente, de 16 anos, foi estuprada e teve seu corpo ensaguentado exposto na internet como um pedaço de carne de açougue. Novamente as redes sociais foram à milhão. Ninguém aceitava a ideia de que uma mulher “de bem” fosse estuprada por 33 homens e eles saíssem impunes.

Dias depois, a garota foi para o IML, foi ouvida pelo delegado Alessandro Thiers e as outras versões foram colhidas. Logo a mídia tratou de divulgar que talvez o caso tivesse relação com o tráfico de drogas. Depois, que a garota era namorada de um dos traficantes e já havia consentido com sexo grupal com alguns homens. Agora, a especulação é outra: talvez a garota tivesse planejado toda a ação, inclusive o vídeo, para vingar um grupo de traficantes rivais.

Basta dar uma olhada nos comentários dos grandes jornais no Facebook e você verá que a situação mudou de lado. Antes, a adolescente tinha as feições de uma pobre garota de periferia, vitimada por sua inocência, pela bebida em excesso e pelos homens sem limites. Agora, segundo toda a cobertura midiática, é claramente o tipo indesejável de mulher: puta e envolvida com os tipos mais abomináveis da face da Terra – os traficantes de drogas.

“Como uma menina tão nova pode se submeter a esse tipo de coisa? – dizem os comentários. “Sexo grupal? Essa sabia bem o que estava fazendo. Vítima é a menina que teria um futuro brilhante na Medicina mas foi estuprada e morta por um bandido pobre e preto – aliás, tá mais do que na hora de ter pena de morte no Brasil, gente. Mulher tem que se cuidar. Ela não é tão santinha como a gente pensava. Os laudos médicos já deixaram claro: não foram 33, mas, no máximo, 5. Era o que ela queria.”

Tudo isso me faz pensar que a mulher livre das amarras e do machismo da revista Veja tem idade, cor e classe social. É aquela que pode acessar o Facebook e mostrar o quão subversiva ela é através de fotos. É aquela que pode beber, pode “dar” quando quiser, mas né? Só com os boys magia. Orgia? Não é tão cool, a não ser que seja com os amiguinhos super esclarecidões do mesmo bairro de classe alta. Drogas? Bah. Só um beckzinho, e, é claro, escondida dos pais. Funk? Só nas festas muito legais na Rua Augusta, porque de resto… Coisa de pobre, preto e favelado.

Mulheres, não importa se foram 1, 2, 4, ou 33 homens que estupraram a menina de 16 anos. E, veja bem, não estou falando do caso em si: tudo ainda está sendo investigado, e os próprios acusados têm direito ao contraditório. A questão é, sobretudo, simbólica e moral. Não importa se a garota consentiu um sexo grupal com, sei lá, 3 caras. Ela pode decidir se quer fazer sexo grupal ou não. O corpo é dela. Consentir com sexo uma, duas ou um milhão de vezes não quer dizer que sempre se consentirá com sexo. Pelo contrário. Atire a primeira pedra a menina que nunca transou com um namorado ou um ficante, mesmo sem querer, porque ele disse que “antes você disse que queria” e “não poderia deixar ele daquele jeito”.

Meninas, sejamos mais companheiras umas das outras. Sororidade, coraçãozinho e hashtag bonitinha não é só com aquelas que vivem no mesmo ambiente em que vivemos, com a mesma cor que temos, e da nossa mesma classe social. A adolescente talvez não seja bela, recatada e do lar. Nem você. A mesma moral que serve a você também deve servir à menina que pode ter desejado fazer sexo grupal com alguns caras, mas depois não quis mais e foi violentamente estuprada por outros 30. Sejamos coerentes com o que defendemos.

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